Os certos dias da minha vida...

« Cansei-me do mundo e, por vias disso, o mundo também acabou por desistir de mim. Vivo bem com isso, mas, como não quero fazer guerras contra a parte do mundo que me conhece, tento incomodá-la o menos possível...»
(Francisco o Pensador)

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Esta afirmação representa as bases do meu novo eu. Uma afirmação quase verdadeira que decerto irá chocar e entristecer algumas pessoas mas à qual, obviamente, não conseguirei fugir por ela ser o farol de tudo aquilo que hoje sou. Mas descansem que isso não significa que esteja de costas voltadas para o mundo. Não, ainda não decidi fechar-me num iglu nem tenciono viver numa ilha deserta. Quero apenas paz e sossego na minha vida e deixar de me preocupar com os outros. Sim, reconheço que dessa forma acabo por fechar um pouco as portas do meu "mundo" e negar ao resto do mundo a possibilidade de me surpreender, mas quando algo nos surpreende quase sempre de forma negativa...que sentimento de perda podemos alimentar dentro de nós? Pouco ou nenhum. No fundo acho que até estou a dar a melhor oportunidade que se pode dar ao mundo, porque, se esperar o pior dele...tudo o que vier da sua parte que seja bom acaba por ser considerado lucro. Neste Post que fiz anteriormente, falei-vos sobre aquela que foi a fase mais tormentosa e mais negra da minha vida. Mas agora irei falar-vos sobre como tudo isso me afectou emocionalmente, moldou-me enquanto ser humano e conduziu-me para uma nova forma de viver. Nos tempos em que os meus ataques de pânico obrigaram-me a desistir do meu emprego e forçaram-me a permanecer em casa, escusado será dizer que, emocionalmente, eu sentia-me o homem mais inútil à face da terra. Quem era eu afinal? e que faço eu aqui neste mundo se for para dar trabalho à  minha família, pensava eu muitas vezes. Nunca me ocorreu ideias parvas como o suicídio, mas na minha mente tornava-se claro que eu tinha-me tornado um fardo e que a minha família viveria muito melhor sem sim. É por isso que durante uma fase tornei-me uma pessoa aborrecida, chata, agressiva e antipática, quase como se o meu inconsciente quisesse convidar a minha família a expulsar-me de casa. Regateava, maltratava, era severo e castigador. A minha mulher e os meus filhos começaram obviamente a estranhar tudo isso. O ambiente tornou-se bastante mau mas é nessas horas que o verdadeiro amor é posto à prova. E a minha mulher tinha-me muito amor. Assim, todo o esforço que eu tinha feito para anular o seu amor por mim, só fez com que ele se tornasse mais forte ainda. Como eu amo a minha mulher. Como eu amo a minha deusa. Como já vos tinha dito anteriormente, devidos aos ataques de pânico de que fui alvo fiquei quase 8 meses em casa sem trabalhar, deixando-me imenso tempo disponível para poder pensar na vida. Uma coisa conduz forçosamente à outra e quando dei por ela, já estava a fazer um espécie de "check-up" à minha alma, revisitando os momentos mais marcantes da minha história e todos os passos que dei até ser conduzido até aquele momento. Decidi finalmente ver-me ao espelho e aceitar o homem que eu via do outro lado. Porque no fim de contas, aquele homem era eu. Um "eu" que sempre existiu, que sempre esteve lá, mas que eu reneguei sempre porque só ele sabia mostrar-me aquilo que eu mais temia. A minha vulnerabilidade. Mas para compreender o homem, primeiro é necessário conhecer a sua história e há algumas histórias para contar...

Certo dia conheci o Filipe. Era um rapaz impecável, tímido quanto baste, bom colega, brincalhão, engraçado e encantador. Eu e ele partilhámos no passado a mesma sorte/infelicidade de pertencer à mesma turma, numa daquelas escolas cujas recordações geradas e guardadas da minha infância foram apagadas rapidamente da minha memória. O Filipe tinha acabado de mudar de escola e eu servi de ponte para poder facilitar a sua adaptação. Era a única companhia dos meus receios. Um estrangeiro no meio de um povo nativo, como eu. E era o único amigo que tinha tido até aquela data. Certo dia o Filipe, numa das suas intrépidas brincadeiras, fez cair um armário na nossa sala de aula. Como eu já conhecia o "ambiente" e sabia quais seriam as consequências, assumi perante os professores que tinha sido eu. Nesse certo dia recebi 20 réguadas nas mãos como castigo, 10 em cada uma (nada que já não tivesse vivenciado antes). Minha pele chorava de dor, meus olhos choravam de raiva, mas o meu coração chorava de felicidade. O Filipe foi poupado e não teve que sofrer. Mas, certo dia, alguns rapazes da escola, talvez aborrecidos com o tempo ou com a quantidade de nuvens que se fartaram de contar nos céus, decidiram castigar o Filipe por passar mais tempo comigo do que a alinhar nas brincadeiras deles. Pegaram no rapaz à força e, sem dó nem piedade, mergulharam várias vezes a cabeça dele dentro da sanita da casa de banho. O Filipe sentiu-se tão humilhado e ganhou tanto medo que nunca mais ousou brincar comigo. Eu compreendi. Nessa altura tinha cerca de 10 anos e até os meus 16 nunca mais soube o que era ter um amigo.

Certo dia conheci o Carlos. Tinha acabado de chegar a Portugal e tivemos também a sorte de partilhar a mesma escola. Numa daquelas cujas recordações de adolescente guardei carinhosamente até hoje. Simpatizamos imediatamente um com o outro. Era a minha 2ª oportunidade de ter um amigo. Éramos inseparáveis, fazíamos tudo juntos e parecíamos quase irmãos. Certo dia ingressei no Rancho Folclórico da minha freguesia por razões que irei referir mais adiante. Para além disso, dançava, cantava, lanchava e viajava por todo o país de borla, nessa altura que podia eu querer mais? Alguns meses mais tarde, e de tanto me ouvir falar sobre ele, o Carlos também ingressou nesse dito Rancho para poder participar também nessa parte da minha vida. E certo dia...o Carlos apaixonou-se por uma rapariga linda sem jamais saber que eu já gostava dela muito antes de ele entrar para o rancho. Certo dia o Carlos, sem saber como, conseguiu seduzi-la...e a partir desse certo dia, o meu amigo passou a ter o seu tempo tão ocupado que deixou de ter tempo para mim. Aceitei e resignei-me perante este facto. A vida era mesmo assim.

Certo dia conheci a Alexandrina. Era uma rapariga linda que ensinava catequese aos domingos e dançava no Rancho Folclórico da minha freguesia. Para me aproximar dela, voluntariei-me para também dar catequese aos miúdos e ingressei no mesmo Rancho que ela. Só queria ter a oportunidade de a ver...e de estar perto dela. De conhecê-la. Certo dia, com muito esforço, engenho e perseverança, consegui aproximar-me dela, mas, certo dia, contra tudo o que gostaria que fosse, tornei-me o melhor amigo dela em vez de...namorado. A Alexandrina desabafava tudo comigo e fazia-me todo o tipo de confidências. Certo dia, confessou-me que gostava do meu amigo Carlos e pediu a minha ajuda para poder se aproximar dele. E certo dia assim fiz. Com a ajuda de muitos elogios, limpei todos os defeitos do meu amigo e coloquei-os no caminho um do outro, até que certo dia...o caminho deles deixou de cruzar com o meu. No ano passado, após mais de 20 anos passados, voltei a cruzar-me com a Alexandrina na rua. Vinha acompanhada da sua filha e contou-me que estava separada do Carlos. Parece que o casamento deles só teve a sorte de durar 6 anos.

Certo dia conheci a Dores. Era uma mulher segura, lutadora, ambiciosa, apaixonada pela vida e era também irmã biológica da minha mulher. A minha mulher tinha sido adoptada quando era bebé e num certo dia decidimos que seria boa ideia conhecer a sua família biológica. Foi nessas circunstâncias que conhecemos a Dores e a empatia entre nós foi quase instantânea. Nessa altura acreditava ser muito difícil existir uma amizade entre um homem e uma mulher mas a Dores conseguiu fazer abalar todas as minhas crenças. Sentia a maior ternura por ela. O maior amor. Para mim era como se fosse uma irmã. Mas não apenas mais uma, era a melhor irmã do mundo. Certo dia fomos visitá-la e reparámos que tinha a despensa da cozinha completamente vazia. A minha cunhada estava a passar por uma grave crise financeira e já não tinha quase nada para meter na boca da sua família. Nesse certo dia, e sem que ela soubesse, fomos ao Pingo Doce e enchemos um carrinho de compras com mantimentos e tudo aquilo que era necessário para que uma casa pudesse funcionar. Gastei mais de 150 Euros mas foi dinheiro gasto com o maior prazer. Lembro-me como eram lindos os seus olhos de felicidade quando naquele dia recebeu de nós aquela enorme surpresa. E lembro-me de me sentir extremamente feliz com tudo isso. Mas certo dia a Dores pediu-nos outro tipo de ajuda. Pediu-nos algum dinheiro a titulo de empréstimo para fazer face a algumas dividas que tinha contraído e que não podia adiar mais do que tinha feito. Sem que ela precisasse de dar mais justificações decidimos emprestar-lhe uma quantia considerável de dinheiro. Mas a partir desse dia tudo mudou. Nas vezes em que decidíamos visitar a Dores, e era habitual encontrá-la em casa, deixamos de conseguir vê-la. Era como se ela soubesse que vínhamos e fugisse sempre antes da nossa chegada. Começámos a sentir alguma vergonha, algum desconforto, e demos-lhe espaço para que ela não se sentisse pressionada com a nossa presença. Podia ser apenas uma fase. Podia ser que ela sentisse algum embaraço por não ter nada para nos dizer nem meios de nos pagar. O dinheiro não me preocupava, mas em vez de amigos...senti que estávamos a ser transformados em inimigos quando a nossa única intenção foi querer ajudá-la. Até que certo dia conseguimos vê-la no Pingo Doce. Vimos a sua filha mais velha alertá-la para a nossa presença, e vimos-lá também fugir rapidamente do nosso alcance de visão quando percebeu que íamos ao seu encontro. Nesse dia não consegui deitar nenhuma lágrima...mas o meu coração ficou partido em tanto pedaços que ainda hoje não consegui juntá-los...

Certo dia conheci o Miguel. Confesso que no inicio não simpatizava minimamente com ele. Achava-o um homem desmazelado, fraco, um derrotado. Era uma pessoa que estava a enfrentar vários problemas familiares e procurava afogar todas as suas mágoas na bebida. Como frequentávamos o mesmo Cyber-café e ele notou que eu era um homem calmo que, por norma, tinha sempre bons conselhos para dar a quem falava comigo, começou a aproximar-se de mim e sem que tivesse havido muitas confianças para tal passou a conversar comigo nas horas em que eu me punha a viajar pela Net. Como não lhe achava piada nenhuma, e nem sequer apreciava a presença dele, fingia ouvir o que ele me relatava enquanto prestava atenção a tudo o que se passava no computador. O meu plano era que, a dado momento, o Miguel percebesse que estava a falar para uma parede e tivesse vontade de se afastar de mim. Mas o Miguel tinha tanta fome de afecto que, mesmo eu não estando a ouvir, idealizou-me como se fosse o seu maior confidente. Assim, mal me via no Cyber-café, corria para junto de mim e passava horas sentado ao meu lado a falar sozinho, a desabafar e relatar a sua vida enquanto eu por vezes dizia um "sim", olhava para ele ou abanava a cabeça como se compreendesse cada palavra que me dizia para que não se sentisse mais fragilizado do que já vinha naquela hora. Mas certo dia o impensável aconteceu. De tanto ouvir a sua história, certos trechos ficaram no meu ouvido e acabei por envolver-me. E sem que me desse conta, comecei a simpatizar com ele. Assim, passei a escutá-lo de verdade e a conhecer a sua história a fundo. Com a minha ajuda, o Miguel voltou a recuperar a sua auto-estima e conseguiu ultrapassar vários problemas que estavam a afligi-lo. Inclusive a bebida que passou a ser consumida com bastante moderação quando se sentava ao meu lado. Quando o conheci, parecia um farrapo ambulante mas algum tempo depois de me conhecer...já parecia um homem confiante e bem tratado. Tinha conseguido fazê-lo ver a vida através de uma perspectiva diferente. Eu tinha-me tornado o maior amigo dele e ele estava a tornar-se também um grande amigo para mim. Até que chegou um dia em que o Miguel ficou rico. Literalmente. Era um filho mal amado provindo de uma família abastecida e uma simultaneidade de acontecimentos fez com que ele recebesse uma herança avultada devido à morte do seu pai e de uma tia-avó que ele já nem recordava o nome. O Miguel passou a ter acesso a muitas coisas, a muitos luxos. Os poucos problemas que ele ainda tinha pareciam em vias de terminar, por fim. Até a ex-mulher, causadora das suas maiores tristezas, já tinha voltado para ele. Ele era agora um homem feliz. Assim, o Miguel passou a estar mais ausente e via-o apenas esporadicamente quando aparecia no Café para mostrar-me a última aquisição que tinha feito. Já não tinha a sua velha carrinha e a sua garagem passou a contar com a presença de um AUDI A3, um A4 e um A5 tão bem lustrado que até o "chaço" que tinha acabou por corar de inveja. O Miguel já tinha 2 ou 3 telemóveis a valer cada um 600 Euros e pensava comprar mais um para oferecer à sua filha de 12 anos. Coisa pouca, obviamente. Até que certo dia, desapareceu de vez. Foi passar férias para a China pensei eu algumas vezes. Tudo vai bem, quando acaba bem.
Voltei a vê-lo no ano passado quando novas circunstâncias da vida voltaram a fazê-lo perder tudo aquilo que tinha. Os AUDI'S, a mulher e os telemóveis. Tudo menos a filha que continuava a ter a responsabilidade de educar. Parece que o dinheiro vale muito pouco hoje em dia sobretudo quando o mesmo é gasto ao desbarato. O Miguel estava novamente triste, sentia-se perdido e não sabia o que fazer. Precisava do amigo. Sabia exactamente aquilo que tinha para lhe dizer mas pedi-lhe desculpas por ter a agenda um pouco ocupada naquela hora. Despedi-me sem alegria nem sorrisos e nunca mais entrei naquele Café. Não voltaria a envolver-me.

Certo dia conheci a Ana. Dizem que o seu amor por mim foi imediato mas eu não consigo recordar quando é que nasceu o meu. A Ana tinha uns olhos lindos, esverdeados e brilhantes, que dava para caber o mundo inteiro dentro deles. Era uma mulher de armas, lutadora, trabalhadora, habituada a sofrer e a passar pelas maiores privações. Ana era uma mulher de fé e conseguia cativar todo o mundo à sua volta através do seu enorme sorriso. Com ela havia sempre alegria e umas boas gargalhadas para partilhar à mesa. Seu amor por mim era incondicional. Era verdadeiro, imenso, profundo como o universo. Era um amor que só uma mãe podia sentir e partilhar com o seu filho. Mas certo dia um problema de saúde fez com que a Ana tivesse que ser hospitalizada e, a partir dele, um grande pesadelo germinou na sua vida. A operação deixou-a debilitada da cintura para baixo e devido às dores que sentia pelas várias anestesias a que fora sujeita, a Ana passou a refugiar-se também na bebida. Era o seu único refúgio. Passados alguns anos, o seu consumo de álcool assumia contornos quase industriais. Entrou num estado de depressão muito grande e nada do que podia fazer conseguia fazê-la acordar de novo para a vida. Nem com amor, nem com palavras, nem com abraços, nem com beijinhos. E certo dia, devido a uma cirrose que entretanto criou no fígado, a Ana morreu. E eu também morri com ela.


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Até que certo dia, por fim, também conheci a Nanda.

Nada disso estava previsto, foi uma pura casualidade do destino sermos colocados lado a lado para defendermos os mesmos valores e ideais. Nessa altura, apesar de ter muito amor em casa e haver tanta gente à minha volta, sentia-me terrivelmente sozinho no mundo. Sentia que já não era ninguém, que me tornará invisível,  e que a minha voz já não tinha valor para quem quer que fosse. Queria brilhar, queria ser ouvido, sentir-me valorizado mas acima de tudo queria ser...compreendido. E a Nanda possibilitou tudo isso. Deu-me mais valor do que aquele que realmente tinha, tornou-me visível para todos, fez-me sentir importante, valorizado, escutou a minha voz e tornou-me melhor pessoa do que aquela que queria ser na realidade. Mas mais importante do que tudo isso, conseguiu matar a minha solidão. De repente sentia-me alguém. Sentia que tinha voz. Como habituei-me desde sempre a escutar as confidências das pessoas, e ouvir os seus anseios, medos e frustrações, reconheci de imediato as fragilidades que a Nanda revelava e a grande necessidade que ela também sentia de receber afecto, amizade, carinho e atenção. Ajudei-a a superar algumas "barreiras emocionais" e uma grande amizade nasceu entre nós. Tinha encontrado uma grande amiga. A minha melhor amiga de sempre. Mas foi ai, quando tudo parecia ser realmente feito para durar, que o o meu coração começou a encher-se de dúvidas e as recordações do meu passado vieram todas assombrar-me que nem um filme de terror. Nossa amizade era bonita...mas era demasiado bonita para ser verdade. Se tudo se resumisse ao mundo digital teria sido fácil porque podia vender a imagem que me apetecesse, mas, porém, os nossos caminhos, e das nossas famílias, também passaram a cruzar-se no mundo real. A Nanda conheceu o meu verdadeiro mundo e eu conheci o verdadeiro mundo dela, e foi por conhecer esse verdadeiro mundo...que o meu coração esvaziou-se de quaisquer ilusões. Aqui, neste mundo virtual, eu podia ser alguém, poderia eventualmente até ser muito, mas na realidade eu continuava a ser muito pouco. Para além de bom marido e bom pai, continuava a não ser ninguém. A Nanda pertencia à classe média e levava a vida que eu sempre desejei levar. Não era uma vida de rei, mas tinha os graus de elegância e sofisticação que eu sempre sonhei alcançar. Lentamente percebi que aquele mundo nunca seria para mim, porque, por mais que tentasse crescer, nunca conseguiria chegar sequer até aquele nível. E para destruir ainda mais as minhas pretensões, tomei consciência de que na minha vida surgiam sempre todo o tipo de azares. Sempre que parecia caminhar com a cabeça bem levantada surgiam sempre coisas no meu caminho que acabavam por atirar-me ao chão. Ainda hoje é assim, quando consigo dar um passo em frente...acontece sempre algo para obrigar-me a dar cinco passos atrás. E foi num certo dia, quando passei um maravilhoso fim de semana na casa dela com a minha família, e na qual fomos carinhosamente muito bem recebidos mas não tínhamos nada para poder lhe oferecer em troca, que tudo me pareceu claro como o céu limpo de uma noite de lua cheia. Que fazia ali o meu chaço-de-para-choques-traseiro-todo-arrebentado...estacionado ao pé de uma casa onde fui beber "Moët e Chandon"? Sim, podia ser uma linda história mas, tal como aconteceu com todas as outras antes dessa, fosse pela mesma vergonha do Felipe, pelo mesmo desinteresse do Carlos, pela mesma apaixonada miopia da Alexandrina, pelo mesmo egoísmo da Dores, pela mesma soberba do Miguel, pela mesma desistência da Ana, ou fosse por que raio fosse, sabia que também ela acabaria por terminar um dia e eu não me sentia minimamente preparado para ultrapassar isso. Desta vez não. Seria a derradeira facada no meu coração. E por tanto ter sido deixado para trás, aprendi a dizer adeus antes de ser abandonado outra vez...*

Foi por isso que, a partir daquele dia, deixei morrer progressivamente o Francisco e guardei apenas o Pensador. Não queria mais ter coração. Nem queria mais envolver-me com ninguém. Era bom pai e bom chefe de família e aquilo tinha que ser suficiente para mim. Queria ser feliz, e sentir-me em paz, mas para fazer isso...não podia continuar a deixar as pessoas entrar e sair da minha vida como se eu fosse um centro comercial e usarem de mim como se fosse uma máquina distribuidora de café. Desapareci, fechei-me como se passasse a viver numa ilha e construí um muro gigante à minha volta. Tomei consciência de que haviam sido criados em mim, inconscientemente, alguns "fantasmas" desde a minha infância contra os quais não conseguia combater. A certas alturas sempre fui posto de lado e isso afectou-me muito mais do que julgava ser possível. Assim, como disse, desisti do mundo e, por força disso, ele também desistiu de mim. Ou quase. Apesar da minha insistência verifico hoje que ainda falta alguém desistir. E é também por isso que tenho a perfeita consciência de que me tornei uma pessoa má. O "mundo" pode ter sido mau comigo, mas consegui cometer a maior maldade de todas. Fechei o meu coração e desapareci sem deixar rasto. E acabei por deixar o Francisco abrir mão da única pessoa que não merecia ser abandonada.

Mas agora o meu caminho já foi tomado e, agora, já só me resta segui-lo e viver dentro dele...




* (Augusto Branco)

6 comentários:

  1. A liberdade é isso mesmo. Podermos escolher. E os outros, concordando ou não, só têm que aceitar as escolhas que cada um de nós faz na vida.
    E, da forma como falas da tua amiga, tenho a certeza que também vai respeitar a tua decisão de não voltares e continuares a trilhar o caminho que escolheste.

    Beijos

    Beijos

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    1. Por ela ser exactamente aquilo que pensas que ela é, também acredito que ela seja capaz de mostrar esse respeito. Não por ser a atitude mais correcta mas sim por ser a única capaz de compreender aquilo que me é essencial viver neste momento.

      Bjs

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  2. Caro Francisco,
    Coloque as suas atitudes numa balança e vai ver que é para o lado das nobres e altruístas que o ponteiro desliza. Pessoa má!? Nada a ver, Pense, Francisco! Pessoa de má índole é ruim e sem princípios.
    Gostei de ler as recordações que retirou do baú. Bom feriado.

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    1. Olá Té,
      Para começar gostaria de agradecer-lhe as suas palavras de incentivo. Sempre defendi que são as nossas acções que nos definem enquanto ser humano, por isso, nunca seremos quem pensamos ser mas sim aquilo que os outros conseguem ver em nós. Talvez tenha havido no passado uma pessoa com os predicados que mencionou, mas não deixa de ser um pouco sintomático que a figura que enfermava esses predicados seja precisamente aquela que eu decidi mergulhar no esquecimento e isolar do resto do mundo. O Francisco. Do que ele foi no passado, apenas permanece o seu legado. O Pensador. Considero que as coisas nunca acontecem por acaso. Quando uma coisa é boa o ser humano nunca se afasta dela. E se todas aquelas pessoas que fizeram parte da minha vida, e que mencionei no meu texto, acabaram por se afastar, talvez...também fosse...porque de certa forma a minha presença os prejudicava ou podia estar a fazer-lhes mais mal do que bem. Foi por isso que decidi afastar-me. Para que não pudesse prejudicar mais ninguém. E sabia que fosse por ela ou fosse por mim, isso acabaria por acontecer um dia e eu não estava preparado para isso. É por tudo isso que tenho a consciência de estar a cometer uma verdadeira maldade. Mesmo que o Pensador permaneça por aqui e continue a ser capaz de ajudar e/ou aconselhar qualquer que seja a pessoa que venha me pedir auxilio, ainda que eu não a conheça de lado nenhum ou me seja estranha, mesmo que seja o melhor dos amigos, o melhor companheiro, o melhor ouvinte, o "salvador", ou a pessoa mais importante das suas vidas...não voltarei a deixar ninguém aproximar-se do Francisco e negarei a quem quer que seja a possibilidade de o conhecer, de o felicitar, de o agradecer, de participar na sua vida ou de interessar-se sequer por ele. Para algumas pessoas continuarei a ser o melhor amigo de sempre, para outros tornar-me-ei talvez o melhor dos homens, ou o melhor dos amigos, mas nunca passarei disso e para todos eles serei apenas...Francisco o Pensador. O confidente. O amigo. A única coisa que sabe ser.

      Bom feriado também para si e obrigado pela sua visita.

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    2. Francisco, o que eu queria dizer é que de certeza o A o B o C...,ou seja as pessoas que fala no texto, só podem estar gratas e reter boas recordações pelo período que passaram juntos...por ter sido importante e um ombro amigo. Depois, depois cada um seguiu o seu caminho...acontece! mas isso não faz de si má pessoa. Má pessoa é aquela que age de forma deliberadamente má com alguém, age de má fé,...que mesmo tendo consciência sente gosto em, por exemplo, humilhar.
      Acho que não é má pessoa! :)

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    3. Sim, eu tinha percebido Té. O que faz de mim má pessoa não é aquilo que fiz pelos outros no passado, mas sim aquilo que me presto a fazer daqui para a frente. Quando decidi abandonar o contacto pessoal com pessoas "amigas" que nunca foram incorrectas comigo só porque alimento o receio de que elas possam vir a sê-lo um dia, ou eu vir a ser para elas, tornei-me uma pessoa má e egoísta. E o pior, é que não consiga lutar contra isso. É um fantasma difícil de expulsar.

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A frase mais estúpida que poderá ser dita aqui é: "Para Pensador pensas pouco..."
A mais inteligente é: "És tão lindo Pensador..."